É regular a exigência de certificação ISO para habilitação de licitante, com base no art. 17, § 6º, inciso III, da Lei 14.133/2021. A exigência de certificação em relação a “material” e “corpo técnico”, referenciados no aludido dispositivo legal, pode ser entendida como a demonstração da capacidade técnica do quadro de pessoal integrada com a experiência organizacional da empresa e seus meios de produção, ou seja, a sua própria capacidade operacional (art. 67, caput e inciso III, da Lei 14.133/2021).
Acórdão 1091/2025 Plenário-TCU
A contratação pública no Brasil entra em uma nova fase com a consolidação da Lei nº 14.133/2021. Um dos temas que têm gerado maior debate técnico e jurídico é a possibilidade de se exigir certificações ISO como critério de habilitação técnica em licitações. Essa exigência, embora cada vez mais frequente em contratações complexas, ainda suscita dúvidas sobre sua legalidade, razoabilidade e compatibilidade com os princípios que regem a Administração Pública.
Dois pontos da Lei 14.133/21 possuem grande relevância para o tema:
Art. 17, §6º A Administração poderá exigir certificação por organização independente acreditada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) como condição para aceitação de:
III – material e corpo técnico apresentados por empresa para fins de habilitação.
Art. 42. A prova de qualidade de produto apresentado pelos proponentes como similar ao das marcas eventualmente indicadas no edital será admitida por qualquer um dos seguintes meios:
III – certificação, certificado, laudo laboratorial ou documento similar que possibilite a aferição da qualidade e da conformidade do produto ou do processo de fabricação, inclusive sob o aspecto ambiental, emitido por instituição oficial competente ou por entidade credenciada.
Historicamente o entendimento do TCU é bem restritivo sobre a possibilidade de exigir certificação ISO em licitações. No entanto, o mais recente acórdão do Tribunal, moldado sob a ótica da nova Lei de licitações, demonstra uma inovação, com maior flexibilidade para a exigência de certificação ISO. Ainda assim, é necessário cautela.
Trata-se de Pregão Eletrônico promovido pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), sob a nova Lei de Licitações. O caso envolveu a exigência de três certificações ISO como condição de habilitação, gerando debates entre a unidade técnica e o relator.
O Caso: Três Certificações ISO Exigidas no Pregão do DNIT
O edital do pregão em questão previa a contratação de serviços especializados de sustentação da infraestrutura tecnológica do DNIT. Como requisito de habilitação técnica, exigia que as licitantes apresentassem as seguintes certificações:
- ISO 9001 – Sistema de Gestão da Qualidade;
- ISO 20000 – Gestão de Serviços de TI (baseada no ITIL);
- ISO 27001 – Gestão da Segurança da Informação.
A exigência provocou questionamentos por suposta restrição indevida à competitividade, levando à interposição de representação ao TCU.
A Justificativa Apresentada pelo DNIT
O DNIT defendeu a exigência das certificações na fase de habilitação técnica, com base em três fundamentos principais:
- Complexidade e criticidade do objeto contratado: trata-se da sustentação da infraestrutura de TI de um órgão de atuação nacional, o que exige padrões elevados de qualidade, segurança e confiabilidade.
- Impossibilidade de obtenção das certificações em curto prazo: o DNIT argumentou que certificações como a ISO 27001 demandam maturidade organizacional e longo processo de adequação interna, não sendo viável exigir sua obtenção somente após a assinatura do contrato.
- Necessidade de garantir conformidade prévia com padrões internacionais: a Administração entendeu que era imprescindível comprovar, já na fase de habilitação, que a empresa opera sob boas práticas reconhecidas internacionalmente, para evitar riscos contratuais futuros.
O Enquadramento Jurídico na Nova Lei de Licitações
A Lei nº 14.133/2021 traz, em seu texto, dispositivos que reconhecem a possibilidade de exigência de certificações como meio de qualificação técnica:
- Art. 17, § 6º, III: admite a exigência de certificações como prova de qualificação técnico-operacional da empresa, desde que emitidas por entidade acreditada pelo Inmetro e haja justificativa técnica pertinente;
- Art. 42, III: permite que se exijam certificações como meio de comprovação da qualidade do objeto ou processo, quando esse requisito estiver vinculado às especificações do contrato.
Apesar de autorizada, a exigência não é automática: precisa respeitar os princípios da proporcionalidade, razoabilidade, isonomia e vinculação ao objeto. Nesse ponto, surgiram divergências entre a unidade técnica do TCU e o relator do processo.
O Entendimento da Unidade Técnica do TCU
A responsável pela análise técnica do caso, discordou da legalidade da exigência, apontando os seguintes problemas:
- Ausência de justificativa individualizada para cada certificação: o edital não demonstrou por que cada uma das três certificações seria indispensável ao cumprimento do objeto.
- Possível sobreposição entre as certificações ISO 9001 e ISO 20000: a ISO 20000 já abrange elementos de gestão da qualidade, podendo tornar redundante a exigência cumulativa da ISO 9001.
- Alternativas menos restritivas não foram consideradas: segundo a unidade técnica, o DNIT poderia ter exigido apenas a adoção das boas práticas previstas nas normas ISO, sem necessariamente exigir a certificação formal já obtida.
- Certificações poderiam ser exigidas como condição de execução contratual: ou seja, a empresa vencedora poderia ser contratualmente obrigada a obter as certificações durante o prazo de execução, e não na fase de habilitação.
Dessa forma, a área técnica entendeu que a exigência feita no edital, da forma como foi redigida, configurava restrição indevida à competitividade, contrariando os princípios da isonomia e do julgamento objetivo.
O Voto do Relator: Discricionariedade Técnica da Administração
O ministro relator do caso, ao analisar os autos, discordou da unidade técnica e considerou que, no caso concreto, a exigência foi legítima e compatível com a complexidade do objeto. Ele reconheceu que a justificativa apresentada pelo DNIT poderia ter sido mais robusta, mas entendeu que:
- As características críticas da contratação justificavam a verificação prévia da capacidade técnica das empresas, por meio das certificações ISO;
- A exigência simultânea de 3 certificações ISO na habilitação foi uma decisão exercida dentro dos limites do poder discricionário do gestor;
- Não houve prejuízo à competitividade, pois várias empresas participaram da licitação, e a diferença de preço entre a empresa inabilitada e a vencedora foi de apenas R$ 0,60, o que afastaria qualquer indício de direcionamento ou favorecimento.
Com base nesses fundamentos, o relator concluiu que a exigência não feriu os princípios licitatórios, sobretudo por estar alinhada ao novo regime jurídico da Lei 14.133/2021, que permite maior tecnicidade na elaboração dos editais.
A Decisão do Plenário
O Plenário do TCU, por unanimidade, acompanhou o voto do relator e julgou improcedente a representação, reconhecendo a legalidade da exigência das certificações ISO no caso específico. Entretanto, deixou ressalva de que exigências dessa natureza devem sempre vir acompanhadas de justificativas técnicas individualizadas e proporcionais, sob pena de violação ao dever de motivação do ato administrativo.
Conclusão
O julgamento confirma uma tendência importante: a exigência de certificações ISO como critério de habilitação técnica é juridicamente possível, desde que:
- Seja tecnicamente justificada, de forma individualizada e com base nas particularidades do objeto contratado;
- Observe os princípios da proporcionalidade e da competitividade;
- Não represente obstáculo desnecessário ao caráter isonômico da licitação;
- E seja adotada com cautela, preferencialmente em contratações complexas e estratégicas.
A nova Lei de Licitações oferece ferramentas mais sofisticadas à Administração, mas também impõe maior responsabilidade na fundamentação técnica das exigências editalícias. Em tempos de profissionalização das compras públicas, o equilíbrio entre segurança, eficiência e isonomia continua sendo o maior desafio.