1. Introdução: Novo horizonte para as contratações públicas

A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) introduziu formalmente o credenciamento como procedimento auxiliar das licitações. Com sua regulamentação, essa inovação ganha força com significativa ampliação de suas possibilidades de aplicação. Neste contexto, surge a pergunta: poderia o credenciamento, em algumas situações, substituir o pregão eletrônico como modalidade preferencial de contratação?

2. Entendendo o credenciamento: conceito e fundamentos

O credenciamento foi claramente definido no art. 6º, inciso XLIII, da Lei nº 14.133/2021 como:
“processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados.”
Este conceito legal está alinhado com o entendimento anterior manifestado pelo TCU:
“O credenciamento, entendido como espécie de inexigibilidade de licitação, é ato administrativo de chamamento público de prestadores de serviços que satisfaçam determinados requisitos, constituindo etapa prévia à contratação, devendo-se oferecer a todos igual oportunidade de se credenciar.”
(TCU – Acórdão nº 436/2020 – Plenário)


O credenciamento pode ser considerado como hipótese de inviabilidade de competição quando observados requisitos como: a) a contratação de todos os que tiverem interesse e que satisfaçam as condições fixadas pela Administração, não havendo relação de exclusão; b) garantia da igualdade de condições entre todos os interessados hábeis a contratar com a Administração, pelo preço por ela definido; c) a demonstração inequívoca de que as necessidades da Administração somente poderão ser atendidas dessa forma.
(TCU – Acórdão nº 2504/2017- – Primeira Câmara)


A principal diferença é que a nova lei ampliou expressamente o escopo do credenciamento para incluir também o fornecimento de bens, e não apenas serviços. Além disso, ouve a ampliação das hipóteses de aplicação, não se restringindo a situações de inviabilidade de competição estrita, mas também para cenários nos quais o seu uso reflita melhor o atendimento ao interesse público. São os casos de contratações paralelas, seleção direta pelo beneficiário ou nos mercados fluidos. Tudo isso representa uma verdadeira evolução para as compras públicas.

Além disso, com base no atual texto da Lei e nos entendimentos até o momento consolidados, já é possível definir algumas características que devem ser observadas pelas regulamentações posteriores:

É importante ainda diferenciar o credenciamento da inexigibilidade de contratação por meio do credenciamento. Essa confusão é comum em razão da previsão do art. 74, IV:
Art. 74. É inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de: IV – objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento;
Os dois instrumentos são complementares, mas com finalidades distintas.

O credenciamento possui natureza de chamamento público e antecede a contratação. É o procedimento prévio por meio do qual as empresas interessadas comprovam o atendimento dos requisitos previstos no edital para compor a relação de empresas credenciadas.

Por sua vez, a inexigibilidade possui natureza de contratação direta. Na hipótese do art. 74, IV, a Administração faz uso do processo de credenciamento previamente formalizado para contratar diretamente uma das empresas lá credenciadas por inexigibilidade.

3. Quando o credenciamento pode ser aplicado?

O art. 79 da Lei nº 14.133/2021 estabelece três hipóteses específicas para a aplicação do credenciamento:

Cada hipótese possui algumas peculiaridades que exigem atenção especial para sua correta aplicação:

O TCU já indicou alguns dos possíveis cenários nos quais o credenciamento é a solução mais eficiente:

O credenciamento é legítimo quando a administração planeja a realização de múltiplas contratações de um mesmo tipo de objeto, em determinado período, e demonstra que a opção por dispor da maior rede possível de fornecedores para contratação direta, sob condições uniformes e predefinidas, é a única viável ou é mais vantajosa do que outras alternativas para atendimento das finalidades almejadas, tais como licitação única ou múltiplas licitações, obrigando-se a contratar todos os interessados que satisfaçam os requisitos de habilitação e que venham a ser selecionados segundo procedimento objetivo e impessoal, a serem remunerados na forma estipulada no edital.
TCU – Acórdão nº 2977/2021 – Plenário, Relator Weder De Oliveira, Data sessão: 08/12/2021

Um exemplo clássico de possibilidade de aplicação do credenciamento é para aquisição de passagem aérea:

É regular a aquisição, mediante credenciamento, de passagens aéreas em linhas regulares domésticas, sem a intermediação de agência de viagem, por ser inviável a competição entre as companhias aéreas e entre estas e as agências de viagem.
TCU – Acórdão nº 1094/2021 – Plenário, Relator Weder De Oliveira, Data sessão: 12/05/2021

Para definição do critério técnico de distribuição da demanda no credenciamento é possível que o edital adote critérios técnicos para definir a ordem preferência para contratação dos credenciados:

Não viola o princípio da isonomia a utilização de critérios técnicos objetivos, mediante pontuação, para definir preferência em contratações decorrentes de credenciamento.
TCU – Acórdão nº 533/2022 – Plenário, Relator Antonio Anastasia, Data sessão: 16/03/2022

Portanto, é notório que o campo de aplicação do credenciamento passou a ser bem maior. Gerando a oportunidade de revisitar o formato de contratações atualmente existentes para avaliar se a aquisição por licitação ainda é a melhor forma de atender ao interesse público, ou se o credenciamento representaria uma opção mais eficiente.

            Ainda que a contratação posterior ao credenciamento ocorra por meio da inexigibilidade de licitação, pela amplitude das hipóteses de aplicação do credenciamento fica implícito que a inviabilidade de competição para esses casos deve ser interpretada de forma ampla.

O melhor para caminho para essa interpretação sistemática é identificar qual a forma de contratação apta a gerar o melhor resultado ao interesse público, não sendo recomendável (inviabilidade em sentido amplo) seguir com um processo licitatório quando o credenciamento represente uma melhor solução.

4. Procedimento do credenciamento

A Lei não definiu o procedimento para realizar o credenciamento, se restringindo a indicar sua natureza como chamamento público e especificar as hipóteses de cabimento. Sendo assim, cada ente federativo pode regulamentar o seu procedimento de credenciamento, dentro dos limites da Lei.

Atualmente o principal parâmetro de regulamentação é o Decreto Federal nº 11.878/2024 (para a Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional), no qual restou definido o procedimento nas seguintes fases:

5. Utilização do Credenciamento para as Empresas Estatais e para o Sistema “S”

No caso das empresas estatais e entidades do Sistema “S” (SEBRAE, SENAI, SESI, SENAC…) as fontes normativas são diferentes. Como se sabe, a Lei geral de licitações e contratos (Lei nº 14.133/21) não se aplica a essas entidades, as quais possuem regulamentos próprios para normatizar as licitações e contratos realizados.

Ainda assim, em vista da inegável utilidade do credenciamento, tais entidades acabam também fazendo uso desse instrumento, o que leva à dúvida para saber se é possível que o façam com total autonomia, ou se devem seguir por analogia os preceitos da Lei 14.133/21.

Tal assunto já foi objeto de análise pelo Tribunal de Contas da União, o qual inegavelmente reconhece a não aplicabilidade direta da Lei 14.133/21 tanto para as empresas estatais quanto para as entidades do Sistema “S”. Contudo, para utilização do credenciamento, foi recomendada a aplicação por analogia das disposições constantes na Lei geral de Licitações e Contratos. Nesse sentido, destacam-se os seguintes acórdãos:

            – Aplicação analógica do credenciamento para as Empresas Estatais:

Embora não previsto na Lei 13.303/2016 (Lei das Estatais), admite-se a utilização do credenciamento pelas sociedades de economia mista, mediante aplicação analógica dos arts. 6º, inciso XLIII, e 79 da Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), uma vez que tais entidades, sujeitas ao mercado concorrencial, exigem instrumentos mais flexíveis e eficientes de contratação.
TCU – Acórdão nº 533/2022 – Plenário, Relator Antonio Anastasia, Data sessão: 16/03/2022

– Aplicação analógica do credenciamento para as entidades do Sistema “S”:

Na contratação de serviços de administração, intermediação e fornecimento de benefício alimentação e refeição aos seus colaboradores, é recomendável que as entidades do Sistema S, caso decidam pela técnica do credenciamento, observem, por analogia, as disposições do art. 79, parágrafo único, da Lei 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos).
TCU – Acórdão nº 459/2023 – Plenário, Relator Marcos Bemquerer, Data sessão: 15/03/2023

6. Conclusão: Complementaridade em vez de substituição

O credenciamento representa um avanço significativo nas contratações públicas, oferecendo uma alternativa mais ágil e adaptável para determinados tipos de contratação. No entanto, é improvável que venha a substituir completamente o pregão eletrônico.

O mais provável é que assistamos a uma relação de complementaridade entre os dois instrumentos, com o pregão eletrônico mantendo sua relevância para objetos padronizados e com especificações bem definidas, enquanto o credenciamento ganhará espaço em:

O futuro das contratações públicas não está na substituição de um modelo pelo outro, mas na utilização inteligente e estratégica de cada instrumento, conforme as características específicas do objeto a ser contratado e as necessidades da Administração Pública.

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