Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público.

STF – RE 1298647, Relator: MIN. NUNES MARQUES, Data de julgamento: 13/02/2025

A responsabilidade subsidiária da Administração Pública nos contratos de terceirização é um dos temas de grande atenção e importância. A questão é definir quando a contratante deve responder pelas verbas previdenciárias e trabalhistas não pagas aos empregados da empresa contratada.

            Por exemplo, imagina-se uma situação na qual a Administração Pública contrata o serviço de limpeza com dedicação exclusiva de mão de obra da empresa X. Os empregados dessa empresa prestam seus serviços cotidianamente nas dependências da Administração, mesmo com vínculo empregatício com o terceiro.

            Durante a execução do contrato, a empresa X deixa de pagar o FGTS e o adicional de insalubridade dos empregados. Mais algum tempo depois começa a atrasar os salários, até o momento no qual a empresa informa que não poderá continuar executando o contrato com a Administração Pública uma vez que irá declarar falência.

            A disputa jurídica é para saber qual a responsabilidade da Administração Pública pelos direitos trabalhistas e previdenciários não pagos por essa empresa X aos seus funcionários.

Responsabilidade subsidiária da Administração Pública pelas verbas trabalhistas se houver falha na fiscalização do contrato

A primeira normatização do assunto constava no art. 71, § 1º da Lei 8.666/93, definindo que não há responsabilidade da Administração pela inadimplência do contratado dos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais.

Mesmo com o reconhecimento da constitucionalidade da referida norma, sua correta interpretação seguiu a linha que a inadimplência do contratado nos encargos trabalhistas não transfere automaticamente a responsabilidade para a Administração Pública. Ainda assim, poderá ser responsabilizada no caso de falha na fiscalização do contrato. Assim ficou consolidado nos termos da Súmula 331 do TST:

Súmula 331 – TST. IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da lei 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

Essa interpretação da jurisprudência foi incorporada no texto da nova Lei geral de Licitação (Lei 14.133/21):

Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§ 1º A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo.

§ 2º Exclusivamente nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.

Portanto, a atual normatização do tema define que o inadimplemento da contratada não transfere de forma automática a responsabilidade pelos encargos previdenciários e trabalhistas. No entanto, a Administração responderá solidariamente pelos encargos previdenciários e subsidiariamente pelos encargos trabalhistas se comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado.

            Pacificado esse ponto, o debate passou a focar em quem tem o dever de provar que houve falha na fiscalização do contrato.

A obrigação de provar a falha na fiscalização do contrato

Coube ao STF definir quem deve comprovar a efetiva fiscalização do contrato para evitar a responsabilidade subsidiária da Administração.

Por um lado, se argumenta que é dever da Administração fiscalizar o contrato e que o empregado é a parte mais vulnerável dessa relação, tendo mais dificuldade em conseguir provar a falha na fiscalização. Por isso a Administração deveria ter a responsabilidade de provar que efetivamente fiscalizou o contrato.

Por outro lado, os atos administrativos possuem presunção de veracidade e legitimidade. Portanto, se a Administração afirma que fiscalizou o contrato, caberia ao empregado que está buscando a responsabilidade subsidiária da Administração Pública comprovar a falha na fiscalização.

A segunda linha de pensamento foi a vencedora. Capitaneada pelo Ministro Relator Nunes Marques e acompanhada por outros cinco ministros, fundamentou-se no princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos, sustentando que a responsabilização da Administração Pública não pode decorrer de mera presunção, exigindo comprovação objetiva de negligência fiscalizatória.

A decisão final do Supremo Tribunal Federal estabeleceu alguns critérios objetivos para a caracterização da responsabilidade subsidiária, fixando teses no sentido que: (i) há  necessidade de comprovação, pelo autor da ação, da negligência administrativa; (ii) há caracterização objetiva do comportamento negligente quando houver inércia após notificação formal; e (iii) foram estabelecidas obrigações específicas para a Administração Pública na gestão contratual.

DA NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA NEGLIGÊNCIA ADMINISTRATIVA

(…) imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público.

Quando um trabalhador terceirizado acredita que o órgão público falhou na fiscalização do seu contrato de trabalho, ele precisará provar isso no processo judicial. Esta prova não é simples – não basta apenas dizer que houve falha, é necessário demonstrar com evidências concretas que o órgão público sabia do problema e não tomou as providências necessárias.

Haverá comportamento negligente quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo.

Para facilitar o entendimento de quando o órgão público pode ser responsabilizado, o STF definiu situações específicas que caracterizam a negligência administrativa.

A principal delas ocorre quando o órgão público é formalmente avisado sobre problemas trabalhistas (como falta de pagamento de salários, por exemplo) e não toma nenhuma atitude para resolver a situação. Este aviso pode vir de diferentes fontes: do próprio trabalhador, do sindicato, do Ministério do Trabalho, do Ministério Público, da Defensoria Pública ou de qualquer outro meio considerado válido pela justiça.   

  • OBRIGAÇÕES ESPECÍFICAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

(…) Constitui responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do art. 5º-A, § 3º, da Lei nº 6.019/1974. 4. Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior.

Em relação ao ambiente de trabalho, o órgão público precisa garantir que os terceirizados trabalhem em locais seguros, limpos e com condições adequadas de saúde. Essa é uma obrigação trabalhista aplicável a todos os contratantes de serviços terceirizados:

Art. 5o-A.  Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal. § 3o  É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato.

Quanto à empresa contratada, o órgão deve verificar se ela tem capital social compatível com o número de funcionários que pretende contratar, seguindo as exigências da Lei 6.019/1974. Essa é uma das obrigações da Administração ainda no processo licitatório, devendo constituir um requisito de habilitação que deve ser mantido por toda a execução contratual.

E no que diz respeito à fiscalização do contrato, o órgão precisa acompanhar regularmente se a empresa está cumprindo suas obrigações trabalhistas, só fazendo pagamentos quando comprovar que está em dia com estas obrigações, além de adotar medidas para prevenir problemas. Para tais atos de fiscalização a própria Lei 14.133/21 definiu algumas das medidas preventivas que podem ser adotadas:

Art. 121, § 3º Nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas pelo contratado, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas:

I – exigir caução, fiança bancária ou contratação de seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas;

II – condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato;

III – efetuar o depósito de valores em conta vinculada;

IV – em caso de inadimplemento, efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado;

V – estabelecer que os valores destinados a férias, a décimo terceiro salário, a ausências legais e a verbas rescisórias dos empregados do contratado que participarem da execução dos serviços contratados serão pagos pelo contratante ao contratado somente na ocorrência do fato gerador.

Em que pese as diversas críticas à decisão do STF no sentido de provocar uma precarização na proteção dos direitos dos trabalhadores, esta organização das responsabilidades trás maior segurança jurídica. Torna mais claro para todos os envolvidos – trabalhadores, empresas e órgãos públicos – quais são seus direitos e deveres, permitindo uma melhor gestão dos contratos de terceirização no serviço público.

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